terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"É com Humpty-Humpty, grande viajante textual por tantos redescrito, que o leitor toma desde logo contacto em Traços de Viagem. Não por acaso inscrito em espaço liminar, a personagem partilha algo de comum com quem viaja: ”O terror – e atracção – do abismo é um constituinte fundamental da viagem. Partimos e viajamos, porque esperamos regressar um dia. Desejamos penetrar num mundo paralelo, mas desejamos também o conforto que nos dá a expectativa de regressarmos ao ponto de partida-chegada” (Traços de Viagem).
Relato de viagens na e fora da Europa (Espanha, Reino Unido, Portugal, Tunísia, Zimbabué, Etiópia e Marrocos), Traços de Viagem de Manuel João Ramos dá-nos a conhecer um narrador que observa e regista, para olhar criticamente mundos culturais e linguísticos diferentes. Ao contrário do viajante oitocentista, não lhe interessa “rebuscar a Lusitânia nos caixotes do lixo das histórias dos outros povos (…). Não viajo para reencontrar raízes lusas e não me vejo contemplando fascinado as Portas de Santiago em Malaca, as ruínas barrocas e bolinhos da Velha Goa, as derribadas estátuas coloniais de Bolama, ou os bares de praia de Fortaleza” (Traços de Viagem).
A co-presença dialogante entre texto e ilustração que já encontrávamos em Histórias Étíopes (2000), continua em Traços de Viagem e, a todo o momento, o narrador lembra a companhia constante do seu caderno de viagem a servir propósitos diversos: “Desenhar não é (…) apenas um passatempo e um exercício de disciplina da memória visual: é também um meio de comunicação entre mim e os mundos por onde viajo, que me permite por vezes escapar ao cliché da alteridade – isto é, humanizo-me um pouco, não fundindo-me ou confundindo-me com um mundo social a que sou estranho, mas tornando-me aí o exótico do exótico” (Histórias Etíopes). E como se refere em Traços de Viagem, “Que sentido fará deixar para outros algum traço das nossas viagens? Talvez apenas aquele sentido que se expressa nas palavras de Salomão: o mundo gasta-se, erode-se, destrói-se e altera-se, mas, nos traços que nele deixamos, ficam preservados – como num molde invisível – os múltiplos sulcos que foram feitos antes dos nossos”.
(Manuel João Ramos, Traços de Viagem, Bertrand Editora, 2009)

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