terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O Viajante

Está acima das nuvens, no alto da montanha mais alta. Vemo-lo de costas, imóvel e contemplativo. Na sua sóbria elegância citadina, dir-se-ia que para ali chegar mais não lhe foi preciso que atravessar tranquilamente uma avenida. Está sozinho diante dos cumes mais altos, vestido como um filho pródigo que regressasse a casa trazendo todos os estigmas de quem vem de um outro mundo. Tudo nele nos diz que não pertence àquele lugar. Terá vindo de uma cidade distante? E como poderia ter chegado ali assim, sem trazer consigo nenhum rasto da poeira dos caminhos? «Tudo é romântico desde que levado para longe», ter-nos-ia dito se verdadeiramente ali estivesse e agora olhasse para trás. Mas ele não pertence a esta paisagem, e por isso o vemos de costas, sem podermos adivinhar de que maneirao seu rosto procura enfrentar o brilho da neve, o reflexo da luz. Tão longe quanto dali está («no fundo da minha alma», diria), hão-de as montanhas parecer-lhe infinitamente maiores do que consegue vê-las, altas acima das nuvens e de qualquer comparação. Tão altas que nem subindo ao ponto mais alto ele poderia, alguma vez, deixar de ser aquele que desconhece a poeira dos caminhos - um homem que há muito desceu a viver no vale e agora regressa, sem saber como voltar na condição em que apenas poderia não ter partido.
Martelo, Rosa Maria (2009), A Porta de Duchamp, Lisboa, Averno, pp. 11-12.

1 comentário:

  1. Achei interessante o vosso blogue sobre viagens literárias. Dedico esse tema a uma livraria on-line chamada d'Abalada e que abri no final de 2009.

    Agradeço sugestões em www.dabalada.pt

    Henrique Vogado

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